Foi publicado hoje, no Valor Econômico, artigo de co-autoria de nosso associado Felipe Banwell Ayres.
“Caso Marielle e quebra de sigilo de dados”.
Caberá ao STF impor os necessários limites ao uso abusivo da quebra de sigilo de dados
telemáticos
Por Ignácio Machado e Felipe Banwell Ayres
13/07/2021 05h01
O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a repercussão geral do Recurso
Extraordinário nº 1.301.250, interposto pela Google. A empresa recorre de acórdão da 3ª
Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que entendeu pela legalidade da decisão de
primeira instância que determinou o fornecimento de dados de todos os usuários que
pesquisaram “Marielle Franco”, “Vereadora Marielle”, “Agenda vereadora Marielle”, “Casa das
Pretas”, “Rua dos Inválidos, 122” e “Rua dos Inválidos” nos quatro dias que antecederam o
trágico assassinato da parlamentar, ocorrido em março de 2018.
Não está em questão a barbaridade do crime que vitimou a vereadora. Do mesmo modo, não
se debate a necessidade de exaustiva e corajosa investigação para elucidação do crime,
inclusive de seus possíveis mandantes. Tampouco busca a Google o reconhecimento de
direito que anularia toda a investigação conduzida até aqui. O que se questiona é unicamente
a possibilidade de se decretar quebra de sigilo de dados telemáticos contra um número
indeterminado de pessoas, a grande maioria delas, se não todas, sem qualquer envolvimento
com o fato investigado, a fim de supostamente auxiliar nas apurações do crime.
A quebra de sigilo de dados telemáticos trata-se, sem dúvida, da mais eficiente medida
investigativa atualmente à disposição dos órgãos de persecução penal. Ela é hoje o que a
interceptação telefônica foi nos anos 2000, e o que a busca e apreensão, seguida de
questionáveis prisões preventivas e negociações de acordos de colaboração premiada, foi nos
anos áureos da controversa Operação Lava-Jato.
Passou o tempo em que o afastamento do sigilo de dados telemáticos servia apenas para
obter os e-mails enviados e recebidos por um investigado. Com o crescimento do uso da
internet no cotidiano e, principalmente, do armazenamento de arquivos digitais em sistemas
de nuvem como o iCloud da Apple, o Drive da Google e o OneDrive da Microsoft, essa medida
permite agora amplo acesso a fotos, agendas, contatos, prints de tela e até mesmo backup de
conversas de WhatsApp e outros aplicativos de mensagens.
A empolgação com a eficiência, contudo, muitas vezes leva à violação aos direitos individuais
dos cidadãos. No caso do recurso da Google, são os direitos de pessoas sequer sob
investigação que estão sendo afastados em nome de uma maior eficiência investigativa, sem
qualquer respaldo legal ou até mesmo constitucional.
A decisão que autoriza a quebra de dados contra um número indeterminado de pessoas se
assemelha à prática, já repudiada pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, de expedição
de mandados de busca e apreensão coletivos, medida muito utilizada contra os moradores de
comunidades carentes, como as favelas no Rio de Janeiro, especialmente durante o período da
intervenção federal na segurança pública do Estado.
Sob o argumento de que a desorganização desses locais impossibilita a individualização das
residências, em inúmeros casos juízes de primeira instância determinam a realização de busca
e apreensão sobre uma área inteira, e não sobre um domicílio específico, de modo que as
forças policiais, após entrarem de casa em casa, só então identifiquem aquelas que de fato
interessam à investigação e nelas apreendam os documentos encontrados. Trata-se de
verdadeira “fishing expedition” criminal, invertendo a ordem do procedimento: primeiro se faz
a medida, para depois serem identificados os suspeitos.
Essa justificativa pragmática é rejeitada pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo
Tribunal Federal, que, em diversos precedentes, já declararam inadmissível a decretação de
medida invasiva contra uma coletividade. Nas palavras do ministro Reynaldo Soares da
Fonseca, em seu voto no Habeas Corpus nº 435.934/RJ, “a iniciativa é notoriamente ilegal e
merece repúdio como providência utilitarista e ofensiva a um dos mais sagrados direitos de
qualquer indivíduo – seja ele rico ou pobre, morador de mansão ou de barraco – i.e., o direito a
não ter a sua residência, sua intimidade e sua dignidade violadas por ações do Estado (…)”.
A rejeição das buscas e apreensões coletivas deve ser estendida às quebras de sigilo de dados
genéricas. Do mesmo modo que protege o domicílio, a Constituição Federal assegura a todo
cidadão o respeito à privacidade e o sigilo de seus dados, inclusive os digitais, consoante seu
artigo 5º, incisos X e XII. Embora se trate de movimento recente, ganhou força no Brasil a
consciência acerca da importância de se proteger a identidade digital e as informações
produzidas nas redes. Prova disso são as recentes iniciativas legislativas como o Marco Civil da
Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Assim, a violação da garantia constitucional ao sigilo e à proteção dos dados é medida
extrema, que não pode ser autorizada de maneira genérica e indiscriminada contra indivíduos
sem qualquer suspeita de envolvimento com o fato criminoso sob investigação, afastando-se
os seus direitos fundamentais como se nada fossem além de empecilhos para a apuração de
crimes.
A investigação de crimes, por mais bárbaros que sejam, não justifica a violação das garantias
fundamentais de pessoas que nada têm a ver com os fatos sob apuração. Caberá ao Supremo
Tribunal Federal impor os necessários limites ao uso abusivo da quebra de sigilo de dados
telemáticos pelos órgãos de persecução penal, vedando a sua modalidade genérica.
Ignácio Machado e Felipe Banwell Ayres são, respectivamente, sócio no escritório Carlos
Eduardo Machado Advogados e advogado no escritório Motta Fernandes Advogados