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• 13 de Jul, 2021 • 09:22

Dr. Felipe Ayres no Valor Econômico

(Português) Dr. Felipe Ayres no Valor Econômico

Foi publicado hoje, no Valor Econômico, artigo de co-autoria de nosso associado Felipe Banwell Ayres.


“Caso Marielle e quebra de sigilo de dados”.

Caberá ao STF impor os necessários limites ao uso abusivo da quebra de sigilo de dados

telemáticos

Por Ignácio Machado e Felipe Banwell Ayres

13/07/2021 05h01

O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a repercussão geral do Recurso

Extraordinário nº 1.301.250, interposto pela Google. A empresa recorre de acórdão da 3ª

Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que entendeu pela legalidade da decisão de

primeira instância que determinou o fornecimento de dados de todos os usuários que

pesquisaram “Marielle Franco”, “Vereadora Marielle”, “Agenda vereadora Marielle”, “Casa das

Pretas”, “Rua dos Inválidos, 122” e “Rua dos Inválidos” nos quatro dias que antecederam o

trágico assassinato da parlamentar, ocorrido em março de 2018.

Não está em questão a barbaridade do crime que vitimou a vereadora. Do mesmo modo, não

se debate a necessidade de exaustiva e corajosa investigação para elucidação do crime,

inclusive de seus possíveis mandantes. Tampouco busca a Google o reconhecimento de

direito que anularia toda a investigação conduzida até aqui. O que se questiona é unicamente

a possibilidade de se decretar quebra de sigilo de dados telemáticos contra um número

indeterminado de pessoas, a grande maioria delas, se não todas, sem qualquer envolvimento

com o fato investigado, a fim de supostamente auxiliar nas apurações do crime.

A quebra de sigilo de dados telemáticos trata-se, sem dúvida, da mais eficiente medida

investigativa atualmente à disposição dos órgãos de persecução penal. Ela é hoje o que a

interceptação telefônica foi nos anos 2000, e o que a busca e apreensão, seguida de

questionáveis prisões preventivas e negociações de acordos de colaboração premiada, foi nos

anos áureos da controversa Operação Lava-Jato.

Passou o tempo em que o afastamento do sigilo de dados telemáticos servia apenas para

obter os e-mails enviados e recebidos por um investigado. Com o crescimento do uso da

internet no cotidiano e, principalmente, do armazenamento de arquivos digitais em sistemas

de nuvem como o iCloud da Apple, o Drive da Google e o OneDrive da Microsoft, essa medida

permite agora amplo acesso a fotos, agendas, contatos, prints de tela e até mesmo backup de

conversas de WhatsApp e outros aplicativos de mensagens.

A empolgação com a eficiência, contudo, muitas vezes leva à violação aos direitos individuais

dos cidadãos. No caso do recurso da Google, são os direitos de pessoas sequer sob

investigação que estão sendo afastados em nome de uma maior eficiência investigativa, sem

qualquer respaldo legal ou até mesmo constitucional.

A decisão que autoriza a quebra de dados contra um número indeterminado de pessoas se

assemelha à prática, já repudiada pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, de expedição

de mandados de busca e apreensão coletivos, medida muito utilizada contra os moradores de

comunidades carentes, como as favelas no Rio de Janeiro, especialmente durante o período da

intervenção federal na segurança pública do Estado.

Sob o argumento de que a desorganização desses locais impossibilita a individualização das

residências, em inúmeros casos juízes de primeira instância determinam a realização de busca

e apreensão sobre uma área inteira, e não sobre um domicílio específico, de modo que as

forças policiais, após entrarem de casa em casa, só então identifiquem aquelas que de fato

interessam à investigação e nelas apreendam os documentos encontrados. Trata-se de

verdadeira “fishing expedition” criminal, invertendo a ordem do procedimento: primeiro se faz

a medida, para depois serem identificados os suspeitos.

Essa justificativa pragmática é rejeitada pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo

Tribunal Federal, que, em diversos precedentes, já declararam inadmissível a decretação de

medida invasiva contra uma coletividade. Nas palavras do ministro Reynaldo Soares da

Fonseca, em seu voto no Habeas Corpus nº 435.934/RJ, “a iniciativa é notoriamente ilegal e

merece repúdio como providência utilitarista e ofensiva a um dos mais sagrados direitos de

qualquer indivíduo – seja ele rico ou pobre, morador de mansão ou de barraco – i.e., o direito a

não ter a sua residência, sua intimidade e sua dignidade violadas por ações do Estado (…)”.

A rejeição das buscas e apreensões coletivas deve ser estendida às quebras de sigilo de dados

genéricas. Do mesmo modo que protege o domicílio, a Constituição Federal assegura a todo

cidadão o respeito à privacidade e o sigilo de seus dados, inclusive os digitais, consoante seu

artigo 5º, incisos X e XII. Embora se trate de movimento recente, ganhou força no Brasil a

consciência acerca da importância de se proteger a identidade digital e as informações

produzidas nas redes. Prova disso são as recentes iniciativas legislativas como o Marco Civil da

Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Assim, a violação da garantia constitucional ao sigilo e à proteção dos dados é medida

extrema, que não pode ser autorizada de maneira genérica e indiscriminada contra indivíduos

sem qualquer suspeita de envolvimento com o fato criminoso sob investigação, afastando-se

os seus direitos fundamentais como se nada fossem além de empecilhos para a apuração de

crimes.

A investigação de crimes, por mais bárbaros que sejam, não justifica a violação das garantias

fundamentais de pessoas que nada têm a ver com os fatos sob apuração. Caberá ao Supremo

Tribunal Federal impor os necessários limites ao uso abusivo da quebra de sigilo de dados

telemáticos pelos órgãos de persecução penal, vedando a sua modalidade genérica.

Ignácio Machado e Felipe Banwell Ayres são, respectivamente, sócio no escritório Carlos

Eduardo Machado Advogados e advogado no escritório Motta Fernandes Advogados


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